domingo, 10 de junho de 2012
CARTAS DO PASSADO
LUANDA, 15 DE MARÇO DE 2020
Chamo-me karima,”Ima” , como dizia a mamã.
Sabe, eu sou filha de um homem pacato que costumava sair ás noites para trabalhar como protecção física e de uma mulher que há quase 10 anos abandonou á mim e meus irmãos. Vivi durante toda minha infância num bairro da periferia de Luanda com o meu pai e os meus irmãos. Sou a menina mais velha, mas antes de mim meus pais tiveram um rapaz, que costumam chamar “recolhe”.
Não são os meus pais que lhe deram esse nome. Na verdade ele assim se chama porque é um verdadeiro marginal. Vive numa constante entrada e saída das esquadras de Luanda. Na verdade, perdi a conta de quantas vezes ele foi detido desde que me conheço como gente. Desde pequeno que ele costuma roubar e de uns tempos para cá, seu desporto predilecto são as lutas de rua com garrafas e catanas.
Como disse, tenho alguns irmãos. Somos três meninas e um rapaz. Sou a mais velha das meninas e quando a minha mãe nos abandonou assumi o papel dela no nosso lar.
Lembro como se fosse hoje do dia em que ela simplesmente saiu de manhã e nunca mais voltou.
Acho que de todas as lembranças da minha vida essa é a que mais me persegue e enferma os meus pensamentos. Nunca entendi o motivo pelo qual ela nos abandonara. Se o meu pai fosse do tipo agressivo ou ausente, talvez eu a compreendesse. Mas não foi esse o caso.
O papa costuma trabalhar durante ás noites e sempre fazia questão de comer connosco antes de sair, mesmo quando as vezes só tínhamos arroz ou chá e pão para o jantar. Pacientemente nos acompanhava. Pode até ser que para ela ele não fosse um bom marido, coisa que só ele pode dizer, mas enquanto pai ele era sagrado.
Quando essa mulher nos abandonou, eu tinha sete anos e minha irmã mais nova devia ter dois ou três. Depois disso, o papa caiu na bebida e se desleixou de nós, pelo que ficamos entregues á nós mesmos. Só nos tínhamos uns aos outros e ninguém mais. Os vizinhos sempre faziam comentários e não perdiam a oportunidade de nos tratar como se tivéssemos culpa do que aconteceu. “FILHOS DAQUELA BANDIDA”, começaram á dizer sempre que um de nós passasse perto deles. Depois disso, o primeiro a desviar-se foi o meu irmão “Recolhe”. Meteu-se nas drogas e com os outros miúdos gatunos cá do bairro.
Só Deus sabe o que eu sofri.
Não tardou e comecei a prostituir-me. Havia uma paragem de candongueiros aqui na rua e nela vi o lugar ideal para me imiscuir. Os cobradores gostavam de me ver passar. No começo, era dinheiro em troca de me pegarem nos seios e depois veio o pacote completo.
Aos 11 anos eu já tinha corpo de mulher. E com o corpo, a minha mente também se dilatou . Pena é que ela viva repleta de magoas. Andei de carro em carro. Na verdade não subia nos carros. Ficava á janela deles enquanto os motoristas me acariciavam os seios e as vezes também o sexo com aquelas mãos sujas e porcas que tanto me magoavam. “Vaquinha da rua de trás” era assim que fiquei conhecida. Fama que foi longe. Quando eu chegasse para brincar com as outras meninas, as mães simplesmente as mandavam entrar como se eu tivesse alguma doença contagiosa.
O tempo passou e a vida não me sorriu. Sem que imaginasse fui me viciando cada vez mais.
Outro dia, sai para noite e no regresso á casa, encontrei uns rapazes do meu bairro que já conheciam a minha fama e decidiram violarem-me. Fui espancada e muito maltratada. Quem sabe o que sofri certamente não me aponta o dedo.
Minhas duas irmãs mais novas continuaram a viver comigo e o desgraçado do meu irmão na casa do idiota do meu pai. Digo idiota porque ele se deixou matar com a partida da minha mãe se esquecendo de nós. Era como se tivéssemos morrido para ele. Continuamos a viver em casa dele, mas ele simplesmente agia como se não existíssemos.
Dói lembrar as vezes em que a minha irmã mais nova ia para escola sem comer e com umas roupas mal amanhadas. Miúda de coragem aquela, tanto que mesmo atrasada nunca desistiu. Meteram a gaja na escola das madres e tinha um excelente aproveitamento, mesmo vivendo no chiqueiro connosco. Ás vezes uma colega dava parte de seu lanche e ela assim se alimentava.
Meus irmãos eram como meus filhos para mim e por isso decidi que os alimentaria a qualquer custo. Pensamento esse que durou pouco pois que a má vida me fez esquecer das minhas criança que pelo tempo foram assim duas vezes abandonadas. Por pouco não me meti nas drogas.
Sempre que voltava pela manhã e via as miúdas dormirem caia no choro profundo e só pensava em sumir, mas se sumisse ninguém as cuidaria porque a depender do meu pai e do meu irmão, de fome morreriam.
De uns tempos para cá, vieram morar cá no bairro umas moças. Elas são lésbicas e de mim gostaram.
Como me davam comida, sem pensar me dediquei a satisfazer os seus desejos. No principio era estranho, mas depois me acostumei a ser por elas tocada. Eram limpas e exigiram que lhes fosse fiel porque não me queriam dividir com os porcos dos taxistas e os bêbados da minha rua. Sempre me davam mantimentos e roupa para as miúdas.
Tenho nojo de mim mesma. Não suporto olhar para mim ao espelho. Me causa mal estar. Eu só queria que o mundo tivesse sido mais justo para comigo e os meus irmãos.
Não culpo a minha mãe mas também nunca entendi como uma mulher que pariu podia ter abandonado pobres crianças a sua sorte. Todos os dias quando voltava da má vida, rezava para que ela voltasse para cuidar de nós. Mas com o passar dos anos fui rezando para que ela morresse porque me tinha matado por dentro.
Meu pai é um bêbado que vivi mais fora do que dentro de casa, mas também, prefiro assim porque ver o estado dele só piora o nosso karma.
Não sei de onde me veio a coragem para escrever, mas espero que ao fim da carta tenha diminuído essa angustia e o nojo de mim mesma.
Ninguém escolhe ser o resto da humanidade. Aquela parte de que todos sentem nojo. e eu não sou excepção, mas infelizmente essa é a minha historia . Uma historia da qual não me orgulho mas já perdi a esperança de que venha a mudar.
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